Ana Francisca gostava de ler. Talvez seja demasiado simples enclausurar seu gosto nesta afirmação: gostava de ler. Ana Francisca vivia para ler.
Os afazeres da casa eram colocados em segundo plano: o que lhe importava mesmo era a vida vivida entre as páginas impressas.
O almoço podia esperar, o fim da história não.
O marido, sujeito calmo e compreensivo, tentava lhe facilitar a vida. Apesar de trabalhar na Sorocabana (que depois seria a FEPASA), ainda chegava a tempo de adiantar o jantar.
Ana Francisca reencostada em sua poltrona, olhos fixos no livro e Batista, o marido, lavando o arroz, pondo o feijão a cozinhar, cortando a cebola.
Entre uma folha e outra do alface observava a mulher quieta, toda concentração voltada ao livro.
Por fim, lentamente ela fechava o volume e voltava à vida real, ao jantar real, à família real.
O marido não era de queixumes: nada disso afetava o amor que sentia pela esposa leitora.
Ferroviário, era mais de fazer do que de ler. Apesar disso, frequentava a Biblioteca da Sorocabana, onde ia retirar livros para a mulher. Assim, eram três livros em trânsito: ele emprestava três livros e quando os devolvia, na verdade só os trocava; levava de volta outros três.
E de três em três, Ana Francisca leu a Biblioteca inteira! Não imagino o tamanho da biblioteca em questão, mas deviam ser muitos livros. Tantos, que resolveram prestar homenagem "ao seu mais devotado leitor", o Batista! Sim, o sócio da biblioteca era o marido e como tal, era em seu nome que os livros eram retirados. Conclusão óbvia para os funcionários da biblioteca, tratavasse de um grande leitor. Ledo engano!
E como esclarecer tal mal entendido sem constrangê-lo? Sem revelar que ele não tinha lido uma linha sequer dos muitos livros que retirara?
Foi marcada até uma solenidade para que Batista, o marido que não lia, recebesse uma honraria como o "grande leitor", o exemplo a ser seguido pelos colegas.
Alegando mal-estar (que não era de todo mentira!) escapou-se dessa.
Em outra ocasião, Ana Francisca meteu-se num concurso de contos da famosa marca de produtos higiênicos para senhoras, a Palmolive. Sim, Ana Francisca também gostava de escrever.
O tema: Saudades. Não se sabe o que levavam as linhas que ela traçou, mas acabou vencendo o concurso. Teria portanto, direito a que o prêmio lhe fosse entregue.
Certo dia, uma carro de luxo chega ao seu portão.
Atende uma Ana Francisca desalinhada pela lida doméstica, que bem naquele dia lhe calhou executar.
"- Por favor, Dona Ana Francisca está?"
"- Ah, sou eu mesma!"
Houve um príncipio de dúvida: poderia aquela mulher que ali se apresentava ser a senhora escritora? Sim, era ela mesma.
O prêmio, uma grande caixa de madeira pintada de azul-marinho, cheia de produtos, foi recebido mas, antes que ela pudesse desfrutá-lo (e por razões enigmáticas) ainda ficou exposto por dias na vitrine da melhor relojoaria da cidade.
Uma prima, em certa feita, viu-se em apuros: tinha que deixar um pequeno verso no caderno de lembranças de uma amiga e nada lhe ocorria. E Maysa, a amiga, lhe cobrava a recordação.
Ana Francisca foi em seu socorro e rabiscou o seguinte:
"Culpa tiveste tu, Maysa,
por quereres meu pobre verso aqui.
Mas pouco importa:
numa roseira, entre lindas folhas verdes
é natural haver alguma folha morta".
Quando Ana Francisca partiu, já entrada em anos, deixou em todos a sensação de um livro muito emocionante do qual nunca pudemos ler o final.
Em sua sepultura, os filhos lhe fizeram uma última homenagem: a escultura de um livro com as páginas entre abertas, como a lhe fazer companhia na derradeira aventura.